Para o professor da
USP Marcos Neira, não é papel da escola treinar atletas. Na sua opinião, futuro
olímpico do país passa pelas federações e confederações
Durante duas semanas, a cada medalha conquistada ou perdida
por atletas brasileiros na Olimpíada Rio 2016, surgia na mídia, e entre o
público geral, os questionamentos das razões pelas quais o Brasil não consegue
entrar no seleto grupo das potências esportivas. Nesta Olimpíada, o objetivo de
ficar entre os dez países com o maior número de medalhas não foi alcançado,
apesar do país ter tido o melhor desempenho da sua história nos Jogos,
terminando sua participação em 13º lugar – nos Jogos de Londres 2012 foi 22º.
Movidos em parte pelo senso comum, com frequência a escola
passou a ser apontada como o caminho seguro para a redenção olímpica. Não raro,
inclusive profissionais da imprensa esportiva apontaram a mesma solução.
Para Marcos Garcia Neira, professor da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Grupo de Pesquisas em
Educação Física Escolar, em que pese o senso comum, não é função da escola e
dos professores de educação física a formação de atletas. Mais do que isto,
segundo Neira, um dos mais respeitados estudiosos do país em educação física
escolar, currículo e formação de professores, a universidade brasileira não
está preparada para desempenhar esse papel.
Nesta entrevista para a Rede Brasil Atual, Marcos Neira fala
da função da educação física na escola, da formação dos técnicos no Brasil e
propõe caminhos para o futuro do esporte de alto rendimento no país.
Qual a importância do
esporte na escola?
É preciso explicar que o esporte é uma das práticas
corporais que podem ser tematizadas na escola. Além do esporte, temos as
brincadeiras, as lutas, as danças e as ginásticas. Considerando que o papel da
educação física na escola é ajudar as crianças a lerem as práticas corporais
que existem, intervirem nestas práticas e reconstruírem cada uma a seu modo,
não podemos pensar que apenas o esporte deve estar na escola
O esporte é mais uma das manifestações que precisam ser
discutidas e experimentadas dentro da escola. Só que quando ocorre uma
Olimpíada, é normal que as pessoas vejam o quadro de medalhas, desejem um
desempenho melhor e pensem que uma das maneiras de melhorar este desempenho
seria investindo na escola.
O país poderia ter a
política de investir na escola para melhorar o desempenho esportivo?
É preciso analisar que o Brasil já experimentou essa
proposta. Nos últimos anos da década de 60, ao longo da década de 70 e uma boa
parte da década de 80, o país teve essa proposta de usar a escola como local de
descoberta de talentos e disseminação do esporte. Se você olhar o quadro de
medalhas daquela época, verá que o desempenho era desastroso, se comparado com
hoje.
Essa foi a Olimpíada em que o Brasil teve o melhor
desempenho e nunca a educação física brasileira escolar esteve tão distante do
esporte como está neste momento. A educação física brasileira na escola já foi
exclusivamente esportiva e não alcançou o desempenho que tivemos agora. Então
precisamos separar uma coisa da outra.
O Brasil, há muitos anos, escolheu um modelo de
institucionalização do esporte que não tem relação com a escola. Há outros
países do mundo – e eu não acho que isto seja bom – onde o sistema escolar e esportivo têm
ligação entre si. No Brasil, não.
Então qual pode ser o
caminho do esporte no Brasil?
A criança, ou o jovem, se inserir num clube ou num centro de
treinamento, em que a entidade seja federada da respectiva modalidade. E então
começar a praticar, a participar de competições e serão os resultados obtidos
nestas competições que habilitarão essa pessoa a participar de um selecionado
e, depois, de um evento nacional ou internacional.
Pode ser que o menino ou a menina nunca faça educação física
na escola e seja um atleta que vá representar o Brasil. Uma coisa não tem a ver
com a outra. É importante que isto fique bem claro.
Mas é senso comum achar que a escola é o local onde esse
jovem pode se tornar atleta.
Há dois pontos que raramente as pessoas tocam quando são
feitas estas análises. Primeiro, se fizer parte do nosso projeto de Estado que
a gente tenha uma melhoria de desempenho no campo esportivo, como faremos com a
privatização da experiência esportiva no atual cenário? Porque o que temos hoje
é o esporte na mão das entidades privadas. As federações, as confederações, os
clubes, são entidades privadas. Como vai ser essa relação do Estado com isto?
Na maioria dos municípios do país, as secretarias de
esporte, quando existem, recebem uma verba pequena, os profissionais são mal
remunerados e boas condições de trabalho nestes espaços praticamente inexistem.
Às vezes há os equipamentos, mas os profissionais não são habilitados para
aquilo, ou há os profissionais, mas não há os equipamentos.
Então não dá para remeter essa responsabilidade à escola. A
escola não tem condições de preparar pessoas para competir no boxe, na vela, na
esgrima, tênis de mesa, entre outras modalidades esportivas. Acho que o poder
público deveria oferecer essa chance das crianças conhecerem e se aperfeiçoarem
no esporte, mas sei que o poder público não está preocupado com isto. E vejo
com muita desconfiança como seria a relação dos clubes com isto.
Infelizmente, há experiências em que os clubes se apropriam
dos espaços públicos para treinar seus atletas. Esse convívio entre o público e
o privado é sempre muito complicado
O professor de
educação física é formado para treinar os alunos?
Nós não temos profissionais formados para isto no Brasil.
Isto é algo que as pessoas não gostam de dizer. Os currículos que formam
profissionais de educação física no Brasil mostram que, ou nós formamos pessoas
para trabalhar na escola, com um viés mais amplo das práticas corporais, ou
formamos pessoas para atuar no âmbito da saúde, que vão trabalhar nas
academias, nas clínicas, nos parques, com corrida, ginástica etc.
Nós não temos no Brasil a tradição, e nem o conhecimento, de
formar pessoas para atuar no esporte de alto nível. Temos pouquíssimos cursos
superiores no Brasil que formam pessoas para trabalhar com treinamento
esportivo. Em São Paulo, por exemplo, apenas duas instituições.
Se você olhar, nós temos feito, nos últimos anos, a
importação de técnicos para trabalhar nas nossas equipes principais. O que é
importante acontecer, principalmente por não termos técnicos aqui no Brasil.
Qual a alternativa
neste caso?
A alternativa seria apostar, como muitos países fazem, nas
federações e confederações. Em muitos países são as próprias federações que têm
cursos de preparação técnica, de formação de professores que vão trabalhar nas
equipes de base, depois nas equipes de alto nível. É um processo de formação
que não ocorre dentro da universidade.
Na USP, formamos bons professores para atuar nas escolas,
principalmente nas escolas públicas. Não é nosso objetivo, por exemplo, formar
bons técnicos de tiro. Não vejo como isto possa acontecer aqui. Agora, uma
entidade como a federação paulista de tiro, a confederação de tiro, ela poderia
trazer técnicos estrangeiros e fazer um processo de formação de ex-atletas, ou
pessoas interessadas na modalidade. Algumas modalidades já fazem isto e, fora
do Brasil, isto é muito comum.
Seria possível a
universidade mudar sua formação?
Se a gente quiser responsabilizar as universidades pela
formação destes técnicos, nós vamos ter que mudar o currículo. E aí vai faltar
conhecimento, porque precisaríamos ter uma formação mais rica do ponto de vista
da aprendizagem motora, do desenvolvimento e do controle motor, áreas do
conhecimento que toda pessoa que vai trabalhar com formação de atletas precisa
ter.
Não estou falando de pessoas que vão trabalhar com atletas
já prontos. Mas uma pessoa que vai trabalhar com as categorias de base, visando
formar pessoas habilidosas lá na frente, precisa ter muito conhecimento nestas
áreas e, no Brasil, são pouquíssimas instituições que abordam isto.
Então, não é uma questão fácil, não é simplesmente aporte de
recursos e vontade. Se a população brasileira definir este caminho, será um
projeto a longo prazo. Eu não formo uma geração de atletas do dia para a noite,
como não formo uma geração de engenheiros, como não formo uma geração de
pessoas democráticas do dia para a noite.
por Luciano Velleda,
para a RBA
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